O lançamento das primeiras impressoras 3D foi cercado de previsões apocalípticas sobre métodos tradicionais de produção. E hoje, o que dizem os especialistas?
Indústria 4.0 já virou um bordão corporativo. É senso comum dizer que o futuro da indústria está em equipamentos conectados, digitais, alimentados e gerenciados por inteligência artificial e com uma rede de suprimentos e logística integrada que vai eliminar a necessidade de grandes estoques e acelerar o desenvolvimento de produtos.
Mas como essa evolução se dará? Novas indústrias disruptivas surgirão, tornando irrelevantes empresas com modelos de negócio baseados em métodos de produção tradicionais? Ou será uma transição gradual, adaptativa, com linhas de produção digitais trabalhando lado a lado com processos analógicos?
Nos últimos dois anos, um grande passo foi dado nesse sentido. Máquinas de impressão 3D, também conhecida como manufatura aditiva, ficaram mais rápidas, trabalham com mais variedade de materiais e chegam a fabricar produtos finais. Há uma mudança de paradigma acontecendo nessa área que deve afetar a produção industrial nos próximos anos e talvez até acabar com o modelo fordista que dominou a indústria nos últimos cem anos.
A impressão 3D não é novidade, vem sendo aperfeiçoada há mais de 30 anos. No início desta década, houve um boom de impressoras desktop que, impulsionado pelo movimento Maker, gerou um belo barulho sobre o futuro da tecnologia. Makers são uma nova categoria de consumidores/inventores que não se contentam com o modelo de cima para baixo da indústria de bens de consumo. Preferem criar, modificar e “hackear” produtos para solucionar problemas ou personalizar o uso de produtos industriais.
Graças a seu baixo custo, as impressoras 3D desktop abriram um mundo de possibilidades de prototipagem e desenvolvimento de produtos. No auge de sua expansão, entusiastas previam que, no futuro, cada casa teria a sua 3D printer, com a qual os usuários poderiam imprimir sapatos, brinquedos e bens de consumo, que seriam vendidos como software. Em poucos anos, a realidade veio e derrubou os entusiasmados do cume das expectativas inflacionadas. Alguns fabricantes quebraram, outros foram comprados por empresas maiores e o mercado de impressoras 3D se consolidou em volta de um core business: impressão em baixa escala (até poucas dezenas de unidades), prototipagem, reposição e produção de peças únicas personalizadas.
Um novo patamar
Em 2017, isso começou a mudar. Novos equipamentos de fabricantes como Hewlett-Packard, Stratasys e 3D Systems começaram a chegar ao mercado com a promessa de serem competitivos em escala com processos tradicionais, como a injeção de plástico. De poucas centenas de peças, a impressão 3D começou a ser utilizada por grandes indústrias para produzir milhares de unidades, em alguns casos específicos até milhões. HSM Management conversou com alguns representantes dessas empresas para mapear como isso está mudando os processos industriais no Brasil e no mundo.
“O movimento da impressão 3D é sair da prototipagem rápida para a utilização em produtos finais”, diz Andreia Cavalli, gerente de canais da 3D Systems. “É isso que está orientando o desenvolvimento de novas tecnologias e matérias-primas. Obviamente existem alguns desafios. Hoje já temos bons produtos para produção de peças para uso final, novas ligas plásticas, impressão em metal, mas tudo ainda em pequena escala. Porém, existem nichos em que ela já está presente, como a indústria aeroespacial, a área médica e mercados que precisam de produtos com qualidade e precisão, mas em pequenas quantidades.”
A previsão era que cada casa teria sua própria impressora 3D, com a qual usuários imprimiriam seus sapatos, brinquedos e bens de consumo. E isso não se concretizou.
No início de 2019, a HP lançou no Brasil sua linha Jet Fusion, que traz um novo patamar de produtividade para a impressão 3D. Segundo a empresa, seu equipamento seria capaz de competir em preço com a tecnologia de injeção de plástico em volumes de até 110 mil unidades. “A HP vem durante 15 anos investindo recursos para se reinventar, e a impressão 3D está dentro dessa reinvenção”, diz Thiago Raimundo, gerente de desenvolvimento de negócios de 3D da HP. “Há uns dez anos, testamos o mercado de 3D com uma impressora FDM e sentimos as dores que os clientes mais tinham: velocidade de impressão, custo de material, resistência de peças e qualidade de acabamento de peças. Com a HP 3D Multi Jet Fusion conseguimos alcançar todos esses níveis. Hoje já entregamos peças 10 vezes mais rápidas do que outras tecnologias de impressão”.
Siegfried Koelln, diretor da SKA, o canal de vendas da HP para suas Jet Fusion, diz que é preciso uma mudança cultural nas indústrias. “É uma tecnologia nova, ainda desconhecida aqui. Ela muda totalmente a maneira como são desenvolvidos produtos e peças. Como trabalhamos com soluções tanto de software como de hardware, estamos investindo muito em seminários, treinamentos e estudos de caso para que os clientes possam ter uma percepção adequada sobre o quanto eles podem avançar com essa tecnologia.”
Para mercados que demandam alta customização e precisão, como a indústria aeroespacial e a área médica, a manufatura aditiva agrega muito valor ao processo.
Koelln usa como exemplo peças que normalmente são compostas de diversas outras peças que são parafusadas ou montadas. “Com a impressão 3D é preciso transformar tudo em uma peça só. Imagine um painel de um carro: se você reduz a quantidade de peças, automaticamente está reduzindo a quantidade de possíveis fontes de ruído, a necessidade de mão de obra, a montagem, o estoque etc.”
Disrupção ou adaptação?
Para Andre Wegner, CEO da Authentise, plataforma de automação de processos de manufatura aditiva, o uso de impressoras 3D para volumes em torno de 100 mil peças já é uma realidade. “Alguns de nossos clientes produzem até 2 milhões de peças ao ano. Eles produziam zero peças há dois anos. Esse crescimento em geral está ligado à necessidade de alguma forma de customização do produto final, com peças que demandam algum tipo de personalização (como palmilhas de sapato adequadas ao pé do cliente, por exemplo).”
Segundo Wegner, existem alguns exemplos de impressão de produtos não personalizados também. A Adidas deve imprimir em 3D mais de 1 milhão de solas de sapato este ano e a GE já produz mais de 10 mil bicos de injeção de combustível usando manufatura aditiva. “A chave para o crescimento futuro é identificar aplicações que possam se beneficiar da liberdade de design (seja pela personalização ou pelo aumento do desempenho), e promover melhorias contínuas do custo total de posse/produção, repetitividade e qualidade.”
A manufatura aditiva vai tornar obsoletos os atuais processos de fabricação? Tudo indica que não, pelo menos no médio prazo. “Trabalhamos com manufatura há mais de 30 anos”, diz Erica Massini, da Stratasys. “Desde o princípio nós temos como principais aplicações a prototipagem e a produção de ferramental – gabaritos, berços, fixadores e moldes para apoio de linhas de fabricação e montagem. No Brasil, o principal foco da Stratasys é este: ferramental e peças para o uso final. Prototipagem aqui não é tão forte, porque o mercado de desenvolvimento de produtos não é tão grande quanto o de lá de fora.”
Massini diz que há um mercado para impressão de produtos finais, mas ele é restrito a nichos nos quais a tecnologia viabiliza a produção em baixos volumes, como o mercado aeroespacial. “São itens bem específicos, como peças de reposição ou peças finais para alguma aeronave, com a produção de poucas unidades de um mesmo modelo de avião.”
Koelln, da SKA, acredita que as duas tecnologias vão trabalhar juntas, mas apenas por algum tempo. “Haverá todo um reposicionamento. Utilizar moldes para baixas quantidades não vai fazer mais sentido. Mas isso é só o começo, quando se utiliza a manufatura digital replicando o que já foi feito. Essa não é sua vantagem competitiva. A grande vantagem é fazer o que até então era impossível. Ela permite um design muito mais refinado, muito mais avançado do que eu estava acostumado. Claro que o cara que faz balde de plástico não vai sair imprimindo baldes de plástico, não faz sentido. Mas, na medida em que você usa a tecnologia de engenharia regenerativa, na qual o próprio software mostra a melhor geometria de uma peça para que você tenha a melhor resistência com o menor uso de material, a coisa muda de figura. Aí a questão deixa de ser apenas quanto custa a peça A ou a peça B.”
Não é só o custo
Ricardo Cavallini, fundador da Makers, empresa que realiza projetos de inovação, lembra que a fabricação em larga escala era um gargalo para a impressão 3D, mas que há muitos outros benefícios que devem ser levados em conta na hora de escolher a tecnologia. “Além da óbvia produção personalizada, a tecnologia permite produzir formas que não são possíveis usando moldes, e com isso é possível criar peças com a mesma resistência mecânica, mas muito menos material. Em um avião, uma peça mais leve pode significar milhões de dólares em economia de combustível por ano. Nesse caso, o custo de fabricação da peça em si pode acabar ficando em segundo plano. Fora isso, é possível produzir peças que demandam menos interferência humana (sem soldas, parafusos e porcas), diminuindo não apenas custos e prazos de montagem e manutenção, mas também possíveis erros humanos.”
Cavallini complementa com algo importantíssimo quando se trata de indústria 4.0: “parte do princípio da transformação da indústria está em poder se manter em constante evolução. Com toda a inteligência e sensores que teremos nas fábricas e nos equipamentos, os produtos poderão ser constantemente aprimorados, assim como acontece com software. Se no meio do caminho temos um alto custo da produção de molde para injeção de plástico de uma nova versão, boa parte dessa inteligência não vai trazer frutos práticos”.
Massini não acredita que a impressão 3D venha a substituir os métodos tradicionais de produção como CNC e injeção de plástico. “São complementares. A manufatura aditiva possibilita a customização, mas não faz sentido para a produção em massa. As tecnologias que nós desenvolvemos hoje estão mais voltadas para resolver questões de produtividade da empresa não necessariamente substituindo os métodos tradicionais de produção. Entramos na parte de diminuição de custo, na otimização das linhas de produção, redução de tempo. Não estamos pensando em colocar uma solução dentro da fábrica que vai fazer todos os seus produtos com manufatura aditiva. Ainda não estamos nesse ponto.”
Danilo Ribeiro, gerente de desenvolvimento da Mimaki, fabricante de impressoras 2D e 3D, concorda que o uso da impressão 3D na manufatura em larga escala ainda está distante. “A manufatura digital viabiliza produtos e mercados que não são atendidos pela manufatura analógica”, diz ele. Ribeiro traça um paralelo com o mercado de impressão 2D. No mercado gráfico existiam os processos gráficos tradicionais, como offset ou flexografia, cujas matrizes de impressão eram tão caras que geravam um gap de 1 mil a 10 mil cópias inviáveis economicamente. Acredito que da mesma forma que as impressoras 2D evoluíram em velocidade e custo e acabaram viabilizando o mercado de baixas tiragens, o mesmo deve acontecer com o 3D. Quando a gente fala de produzir qualquer quantidade em volume industrial, o processo ainda é o convencional, analógico. A tecnologia atual pode demorar de 10 a 20 horas para produzir uma peça, mas acredito que com a evolução das tecnologias essa é uma tendência que pode virar realidade no futuro.”
O momento no Brasil
Segundo Leandro Santos, gerente geral da Flex, primeira empresa a ter uma HP Multi Jet Fusion instalada em seu parque, o interesse das empresas nacionais pela manufatura aditiva está alto. “Muitas empresas nos procuram para conhecer a tecnologia e ver como estamos aplicando, principalmente na área médica e automotiva”, disse ele, sem citar nomes. “Em termos de custo e resistência, a peça impressa já tem características tão boas quanto as injetadas. A tecnologia ainda é bem nova e existe a necessidade de adaptação do modelo de desenvolvimento de produto. À medida que as empresas forem conhecendo a tecnologia, novos produtos serão lançados.”
Para João Alfredo Delgado, diretor de Tecnologia da Abimaq, a utilização de impressoras 3D é uma questão de custo, em que cada oportunidade deve ser avaliada na ponta do lápis. “Tudo depende do que você vai fazer. A tecnologia e as máquinas já existem, mas é preciso avaliar o custo. Originalmente a impressora 3D era para projetos personalizados, mas hoje não é mais, a tecnologia barateou muito. Entretanto, não vemos a impressão 3D como substituta, mas como complemento que preenche uma lacuna existente que acabava não sendo atendida no mercado porque não era viável. Deve resolver problemas de estoque também. Antigamente você tinha que fazer uma produção a mais de uma peça injetada, manter em estoque para alimentar o mercado secundário, o mercado de reposição. Hoje você já consegue imprimir de acordo com a demanda. Infelizmente, porém, todas essas tecnologias evoluíram muito exatamente no momento em que a indústria no Brasil está numa crise enorme. Por esse motivo, seu uso por aqui ainda está incipiente. Estão todos de olho, mas o Brasil parou. Os equipamentos são até baratos, mas o mercado não está permitindo investimento, nem em novas tecnologias, nem nas tradicionais.”
Para Delgado, a impressão 3D pode se equiparar em custo a um processo tradicional, mas não em produtividade. “Uma impressora, por mais veloz que seja, não vai conseguir a mesma produtividade que uma injetora. É uma questão física. Para fabricar uma impressora com a velocidade e a precisão de uma injetora, seria necessário colocar tanta coisa que ela ficaria muito cara, inviável. Existem muitos problemas de engenharia a serem resolvidos ainda. Por exemplo, o problema da resistência que eu preciso ter. Por mais que seja possível imprimir em fibra de carbono, fibra de vidro, diversos materiais, ainda existe um problema micromolecular de resistência. Para algumas peças, ela não funciona.”
Para Koelln, depende do que você considera produtividade. O conceito, segundo ele, é diferente. “Uma injetora não injeta nada sozinha, ela precisa de um molde que precisa de manutenção e uma série de outros cuidados. Com uma impressora, você só tem o equipamento e um arquivo para imprimir. Isso tem um impacto muito grande na velocidade e na flexibilidade da operação. Não dá para comparar diretamente, é um novo mundo.”
“Essa crise atual da indústria fez com que o País desacelerasse demais e os investimentos em inovação quase que desapareceram”, diz Rodrigo Krug, CEO da Cliever, fabricante nacional de impressoras 3D. “O Brasil é um país de serviços. Se comparado a qualquer outro país do mesmo nível, nossa atividade ‘criativa’ industrial é baixíssima, pouco se cria aqui. Basta comparar nossa carga tributária sobre serviço versus produto. Nosso ecossistema não ajuda, e a indústria como um todo recebe pouco incentivo a investimentos em inovação. Isso tudo faz com que o País fique com um atraso de mais ou menos cinco anos para a adoção de novas tecnologias e processos.”
Com uma visão mais otimista, Cavallini acredita que olhar a nova tecnologia apenas como substituta da tecnologia atual é um erro comum. “Quando a TV surgiu, muitos imaginavam que seu grande uso seria para assistir concertos musicais. Uma tecnologia de ruptura como a impressão 3D permite criar mercados novos e trabalhar com novos players. Muitas empresas e consumidores não utilizam injeção de plástico porque o processo só faz sentido para se produzir milhões de peças. Agora, se a impressão 3D tiver um custo interessante para entregar centenas de milhares de peças, todo um mercado novo pode se abrir. Pequenas empresas e artistas poderão criar novos produtos e produzir com escala suficiente para testar mercados e atender nichos maiores.”
E com as transformações acontecendo de forma tão acelerada no mundo, no médio prazo será possível saber se as previsões sobre a manufatura aditiva estavam sub ou superestimadas no mercado.